Prosa

“É menina!”

“É menina”, disse o médico. E lá fui eu mundo afora com essa verdade de vida, meio que sentença, meio que sorte e amparo, quase uma valentia, dita pelo médico na sala de parto. Parir é missão dolorosa. Mulheres aguentam dores difíceis, algumas ainda sem nome e explicação.

Lá fui eu ser “menina” numa família de homens, num mundo de machos. Brinquei de boneca, me vestiram de rosa, fui educada a ter bons modos, a evitar chamar atenção. Não que “menos fosse mais”. “Menos” me foi apresentado como um lugar, uma forma de me portar e me proteger. Ser menos. Também me ensinaram a sorrir cordatamente, sem mostrar muito os dentes, isso denotaria facilidades e não seria bom. Cresci entre muitas normas difíceis de entender, como “Isso é coisa de menino”. Um dia sangrei e disseram que não era mais menina, tinha virado “mocinha”. Achei aquilo muito engraçado, “Já não era menina o suficiente?” E passei a cultuar mensalmente aquele sangue vermelho, sagrado, de cor forte e viva. Achava bonito. Não dividia com ninguém minhas descobertas. Em toda mulher residem muitos silêncios de menina.  

Cresci e saí por aí. Descobri verdades. Evitei mentiras. Me disse “sins” libertários, transgredi “nãos” sem culpa. Ignorei alguns avisos, inverti algumas regras. Não há peso na bagagem.  “É menina!” Sim, doutor, menina, e como tantas outras, eu escrevo minha história todos os dias neste mundo por vezes inóspito. As minhas fragilidades jamais foram fraquezas. Meninas são fortes, doutor. Agora vamos à vida.

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