Inferno de Dante. Por que uma família se reúne tanto? Karma. Não é possível ter tantos aniversários, batizados, almoços e jantares em família. A conta não bate. Há mais festas do que gente nesta família. E enquanto me secava às pressas depois do banho, tentei fazer uma conta de quantos primos, tias e tios eu tinha e a quantas festas já havia ido. A conta não fechava. O táxi tinha chegado. Hora de ir. Todos já tinham ido pro almoço e minha mãe me ligava sem pausa. Porque não basta existir, tem de socializar, sorrir e dizer que gosta de todo mundo. E lá fui eu para casa da minha tia.
Cabelo molhado, sem pintura, sem batom. Cheguei esbaforida. Ressaca sob controle, dando meu melhor. Casa da tia H. Abraços daqui, abraços dali. Uns me acharam mais magra, outros mais “cheinha”. Chamar alguém de “cheinha” é total falta de vocabulário e muita vontade de incapacitar o indivíduo a um futuro melhor. Eu sorria, afinal, estava ali pelos laços de família e não para exigir performances criativas ou comentários relevantes. É preciso lembrar disso ao entrar em certos grupos.
Encontrei minha mãe. “Você veio assim? Por que você não se arruma melhor? Essas pessoas nunca te vêem e você sempre assim, com esse desmazelo…” Ser chamada de desmazelada me parecia mais digno do que “cheinha”. E vindo de minha mãe que não saía de casa sem colocar seus brincos, havia um respaldo técnico para a crítica que eu levaria em consideração. Ela não parou “ tão bonitinha e tão desarrumada. Nem secou o cabelo…”
Não deu tempo de secar o cabelo. Cheguei em casa às 4h da manhã, de uma festa que até aquele momento não sabia se tinha sido boa ou não. Lembranças em flashes. Acordei em cima da hora. Queriam o quê de mim? Fato: uma verdadeira família nunca reconhece os esforços de alguns membros para interagir. Nesse instante, passou tia N. na minha frente. “Oi , tia!” Aproveitei e descolei da minha mãe. O próximo passo dela seria reparar que havia ido de tênis. “De tênis?! Você realmente não se arruma! Olhe suas primas, todas tão arrumadinhas. Você não faz nenhuma vontade minha…”.
Tia N. e tia M. ( melhor evitar nomes) eram “solteironas”. Faziam parte de uma geração em que casar era a meta. A única meta. Ter filhos, o único fim digno de uma mulher. Trocar fraldas, a missão sublime. Elas se sentaram no sofá e eu também. Não avaliei riscos. Agi por impulso. Acontece. Começamos a conversar. Tia N. era professora aposentada e bonachona. Tia M. havia tentado se casar por correspondência, mas os pretendentes desapareciam. Soube de um que morreu. Começou a correr o boato de que ela era “pé frio com homem”. Coisas que se falam pelas costas em uma família unida. Chegou a frequentar uma benzedeira, mas não casou.
De repente, Tia N. me olhou e começou “ Você tem de casar logo e dar sobrinhos pra gente! Suas primas estão todas casadas…”. Começou o ataque aéreo. Havia me esquecido dessa parte. Todas as minhas primas haviam se casado e gerado rebentos. Eu não. Nesse momento, uma de minhas primas chega com o filho, B., um bebê lindo e gorducho de seis meses. “Segura ele pra mim, um minutinho?”. B. veio parar no meu colo e nós dois nos ajeitamos da melhor forma um com o outro. Resolvi ficar em pé. Ele me olhava e fazia bolinhas de cuspe. Foi o suficiente. O palco estava montado.
Eu em pé com um bebê nos braços. A cena era inédita para mim e para todos. Ele parecia estar hipnotizado por mim. Com aquelas mãozinhas fechadas, começou a puxar meu cabelo. Ficamos assim até sua mãe voltar. Minhas tias me olhavam enternecidas, meus pais estavam orgulhosos “ ela leva tanto jeito…”. Eu e B. estávamos no centro da festa. Nossa sinergia era total, uma dupla e tanto. Outros primos e tias também nos observavam de longe. Inveja. Ele não chorava comigo. B., com seus seis meses de vida, já cunhava a fama de chato e temperamental. Mas comigo estava uma simpatia! Alternava entre seu sorriso desdentado e bolinhas de cuspe.
Ele se foi dos meus braços para o colo da mãe e eu voltei a ser eu mesma, aquela que ainda não tinha se casado e volta e meia surgia com rumores de “ ela está namorando”. O que dava sequencia para “Será que é sério? Será que dessa vez emplaca?”. O que ninguém entendia é que sempre namorei muitos e muito a sério. Mas nunca namorei para casar. That’s the point!
Mas eu pagaria, ainda ali, um preço pela cena com B., que agora deveria dormir em algum quarto silencioso da casa, alheio a tudo e todos.
Minhas tias voltaram ao tema. “Você já está com 27 anos. Não está na hora de colocar essa cabecinha no lugar? Hora de encontrar alguém e casar?”, “Casar e ter filhos, dar netinhos a seus pais. Você não tem vontade de ser mãe?”, “ O tempo está passando e ter filhos mais velha a gravidez é arriscada…”, ou “Quando vamos conhecer o eleito, o sortudo?”
Eu odiava com todas as minhas forças essa pressão. Todo Natal, em toda festinha, sempre essa conversinha tosca. Então, olhei para tia N. e tia M., adociquei minha voz e com os olhos convincentemente desolados, disse “Eu não posso ter filhos”. Avaliei e constatei rapidamente o sucesso da revelação. A duas me olhavam sem piscar. Choque assimilado com sucesso. Chega de cobranças maléficas! Mas sem perder o “time”, pausei e dei sequencia ao golpe final “Eu tive de tirar meu útero.” E ali, naquele instante, soube que interpretações viscerais e repletas de urgência ainda tinham espaço neste mundo. Game Over.
As duas se entreolharam incrédulas. Um misto de culpa, pena e autoflagelo. Um cocktail na veia. E finalizei “Mas não comentem com meu pais. É muito difícil para todos nós…”. Claro, elas agora tinham um segredo. Que certamente iriam espalhar, mas sem que meus pais soubessem de tal enredo. O que me geraria enormes problemas se um dia fosse descoberto. Fui embora tensa e aliviada. Dane-se. “After all, tomorow is another day”. Sempre amei Scarllet O’Hara.
Nunca mais me encheram a paciência. Eu, meu útero, meu pais e todos os namorados que tive desde então passamos bem, como havia de ser e sempre foi. No enterro de Tia M., que Deus a tenha em alta conta, tia N. me abraçou e disse “você é uma menina de ouro”. Claro que sou. Sobrevivi a todos aqueles almoços e jantares, mantive minha autoestima a base de terapia, amigos e álcool, e ainda consegui ser quem eu sou com o mínimo de interferência familiar. “Obrigada, tia. Você é um amor.” E pensei “…mas não me irrite que invento outra mentira e empacoto você pro além”.