Prosa

Duas cadeiras de ferro no jardim de casa

Ela estava de mudança. Não sabia ao certo ainda para onde iria, mas queria desesperadamente ir. Mudar. Havia feito apostas altas, mudou tudo para ser feliz, apostou num grande amor, saiu de sua zona de conforto e foi parar no meio do mato, entre nuvens frias e raros dias de Sol. Esqueceu que amava o mar e abandonou o burburinho das ondas pelo vento frio que transitava entre pinheiros e araucárias. Era uma mulher sem medos.

Quando eu a conheci ela estava triste. Mesmo assim havia traços de uma personalidade altiva. Daquelas que decidem rumos, dizem “nãos” quando necessários e se deliciam com os “sins”, acredito que esses dados com fartura pela vida, refletidos ainda em seu sorriso largo e generoso, típico de gente que tem muitas histórias boas para contar.

Um dia, ela resolveu que mudaria e me avisou contento o choro “ Vou embora daqui. Aqui eu não fico mais. Eu estou enlouquecendo. Deu.” O amor havia ido embora e nada mais fazia muito sentido. Mesmo com pouco tempo de convivência, era visível que ela não era nem a sombra do que já deveria ter sido um dia. Uma mulher de convicções firmes, olhar destemido e um coração aberto em varandas para o mar e possibilidades infinitas.

Os fins que precedem alguns recomeços muitas vezes se alongam como se testassem a determinação pessoal de cada um, e com ela não estava sendo diferente.

A piscina de sua casa estava coberta de folhas secas. Ela colocou alguns objetos à venda, como quem se despede em conta gotas do passado acumulado para evitar despedidas prematuras e remorsos sem solução. Entre os primeiros lotes à venda, uns casacos muito elegantes comprados em Londres, guardavam a memória de idas e vindas à terra da Rainha Elizabeth, ao som dos Beatles e Rolling Stones. “ O que eu vou fazer com isso pra onde eu vou? Estou voltando pra perto do mar, não preciso de sobretudos! Não vou usar mais”. Ela não queria mais viajar para lugares frios. Ela estava decidida a viver com os pés na areia e assumia a saudade de andar descalça, numa terra em que o Sol abre e termina os dias, com raras interrupções.

Depois vieram uns pratos, num segundo lote, umas porcelanas descombinadas, belas taças de vinho, uma echarpe comprada em Veneza, usada algumas vezes para ir a mostras de arte, cinema, exposição e celebrações com amigos.  Um passado com charme, sem dúvida. Por onde andariam o amigos? Não perguntei. Por aí, certamente.

Nossa amizade cresceu dentro do pouco tempo disponível que tivemos. E enquanto ela se despedia dos tons de verde da paisagem, eu chegava àquelas montanhas para morar. Estava sedenta por pinheiros, cedros e araucárias, não imaginando melhor lugar para viver. Direções opostas.

Como amizade é coisa que surge do nada, comprei duas cadeiras de ferro antigas, lindas, dos tempos em que varandas e jardins abraçavam gente, conversas elaboradas, entre drinks e cigarros, não apenas pessoas que se agrupam e se tornam ausentes, absortas em seus celulares.

As cadeiras precisavam de lixa, tempo e tinta esmalte. Não me intimidei e fechamos negócio. Vendo meu amor por suas antiguidades, no dia de sua partida, ela me deixou de presente: mais duas cadeiras.  Essas não seriam para o jardim, mas para a copa. Eram de ferro e fórmica com padronagem de madrepérola. Coisa antiga e boa. Para os papos de cozinha, na intimidade da casa, entre sanduíches, lanchinhos da madrugada. Cadeirinhas para conversas acompanhadas de café forte.

Ela se foi. Não nos vimos mais. De alguma forma, demos um jeito de não nos encontrar porque… depois de uma certa idade, economizamos excessos e despedidas.

Meses depois, as cadeiras de ferro estavam arrumadas, em uso no jardim. Fotografei e mandei pra ela. A resposta veio. Intensa, emotiva, honesta e clara. “ Elas eram da minha mãe. Obrigada por cuidar tão bem. Ela iria ficar feliz de vê-las restauradas no seu jardim”.

E assim vamos sendo parte da vida dos outros, das memórias, dos afetos, laços que vão se entrelaçando num bailado confuso e sem muita explicação. Numa trama entre achados e perdidos. Doações e entregas. Encontros e partidas.

As duas cadeirinhas de ferro, muito lindas e confortáveis, falam sobre um passado e nomes que desconheço, década de 1950. Mas imagino a elegância, a história, os gestos de uma geração que um dia fez delas objetos de casa, “móveis de jardim e varanda”.  Elas guardam a “arte de receber” de um tempo que fica cada vez mais distante.

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